Sobre a passagem da Dulce Magalhães
Minha amada amiga e irmã Dulce,
Hoje somam-se 60 dias que você partiu desse plano, dessa dimensão tridimensional cada vez mais materialista, ao que me parece.
Até hoje, não havia conseguido me manifestar a ti por escrito e de forma um pouco mais ordenada.
Assim como outras pessoas próximas a ti, desde sua passagem me permiti vivenciar a dor e contemplar o silêncio no meu dia a dia, na expectativa de lidar e ancorar o turbilhão de sentimentos, sensações e pensamentos “atrapalhados” que pairaram por aqui.
Mesmo com tantos ensinamentos, mesmo estando no caminho do meu propósito, percebi que estou distante de “dar conta” desse tema, a morte, sobre o qual tanto conversávamos, com a leveza e o “deixar fluir” que o assunto exige.
Lembro de dizer muitas vezes (algumas em silêncio) que esse era (É) o meu tema de vida e revivi esta verdade ao escrever a anamnese do CIT (Colégio Internacional dos Terapeutas), quando identifiquei que o meu “despertar” surge a partir dessa dor, a dor da morte.
Depois, por meio do meu mapa astral, comecei a observar a quantidade de planetas que tenho na casa 8 (casa da morte e do renascimento) e outros planetas desafiados por escorpião, bem pertinho, grudados na casa 8, a casa dele (escorpião).
Sem contar as experiências pessoais de “quase-morte” que me fizeram olhar de frente para o que eu tinha que deixar ir, deixar passar, enfim, morrer. Consciente ou inconscientemente, escolhi esse tema para o projeto monográfico da minha especialização em Psicoterapia Junguiana que, naturalmente, será dedicado a você, por tudo o que você representa, pelo privilégio, pela honra e gratidão que tive (e que tenho) de conviver e aprender contigo.
De fato, não é fácil falar, não é fácil sentir, não é fácil experenciar a perda física de uma pessoa que amamos verdadeiramente. Não é fácil não… Mas como você bem dizia: “não morremos porque adoecemos, não morremos porque sofremos um acidente, não morremos porque alguma coisa nos afeta. Morremos porque somos mortais. E estamos aqui, sim, para aprender a morrer. Estamos aqui para morrer. E a morte é o auge da vida”.
Esse ensinamento é um dos legados que você nos deixa, ao sair de cena no auge, no ápice da sua vida. Cada dia que passa tenho a mais pura convicção dessa realidade, porém, ainda é muito dolorido caminhar sem poder trocar de forma mais direta com você as minhas visões e ideias; sem poder conversar sobre nossos momentos, nossos sonhos oníricos e a relação com a alquimia.
E por isso, tenho abraçado minha dor e me perguntado, bem do jeito que você ensinou: “para que serve essa dor? Porque você me visita neste instante? O que você veio me ensinar? O que você tem para me contar? Me conta as tuas historias minha dor. Fala minha dor: Porque é que esta doendo tanto em mim? Porque é que você veio me visitar aqui no coração? Porque você veio me visitar na cabeça? Num pensamento que não para de doer? Porque você veio me visitar nesse pulso emocional que faz com que eu sinta tanta saudade? Com que eu sinta tanta pena. Pena de mim, inclusive. Porque? O que você veio me contar sobre o caminho da minha vida? O que você veio me contar sobre os meus desvios? O que você veio me contar sobre o meu potencial de viver plenamente?”
Algumas respostas surgem, e tento, de verdade, me sustentar para atravessar a ponte dessa transformação escorpianina que me exige a todo instante.
Você disse que precisamos descobrir as histórias ocultas que estão lá dentro, lá no fundo, bem “embrulhadinhas”, bem dentro da nossa dor, pois quando desembrulhadas, quando as tornamos livres, elas vão como pássaros que voam e encontram novos lugares, uma boa temperança de realidade.
Essa sua fala me faz lembrar do dia de sua partida: quando estava arrumando a mala para ir a “Floripaz” para o ritual de sua passagem, um lindo pássaro adentrou (até hoje não sei como) pela janela do meu banheiro, no décimo segundo andar do edifício onde moro! Gosto de acreditar que, de alguma forma, este símbolo refletia você, como a me repetir o mantra que tanto nos ensinava: “está tudo certo, não tem nada errado”. Gosto de acreditar que aquela foi a forma que você encontrou de acalmar meu coração e me contar que só estava livre e voando para um lugar novo, um lugar onde certamente iremos, um dia, nos reencontrar.
Confesso que é difícil sim pensar na sua ausência física. É difícil pois como você bem dizia, “não estamos acostumados, habituados à ideia de morrer, mas de fato, nascemos para morrer”.
Mas que essa convicção permita nos tornarmos pessoas melhores, pessoas capazes de nos transformarmos a partir de um paradigma mais amplo, livre das amarras do dia-a-dia, um paradigma mais lúcido, e honrarmos nosso propósito maior, o propósito de despertarmos para uma nova e profunda consciência da vida e da morte.
Que possamos romper com o tabu da morte e entendê-la como a mais pura qualidade humana. “Morremos porque somos mortais”. E esta mortalidade, essa capacidade que temos, devemos sim, a cada dia que passa, explorar melhor e deixá-la fluir com a nossa própria experiência… fazendo e acontecendo o Renascer a cada instante.
E sim, minha irmã, que sejamos capazes de seguirmos para uma nova etapa livres, leves e absolutamente soltos, tal como o pássaro que veio me visitar na noite em que você partiu…